Cultura

Gastar menos é o novo hype ou só um sinal de cansaço coletivo?

O consumo, como conhecemos, está sendo ressignificado na Ásia. Não por campanhas publicitárias nem por discursos de sustentabilidade de marcas globais, mas por jovens que vivem, todos os dias, o impacto direto do custo de vida, da pressão social e da saturação digital. A análise da WGSN sobre os principais movimentos de compra na Ásia do último ano revela uma mudança profunda de comportamento: o foco saiu do status e foi para a estratégia, da performance para o pertencimento, do excesso para o essencial.

A pesquisa identifica três macroforças que estão redesenhando o consumo asiático: o value-hacking, a inclusão radical e o consumo como entretenimento emocional. Abaixo, cada uma delas explorada em profundidade.

1. Value-hacking: quando comprar bem é mais importante do que comprar muito

Diante da inflação, do desemprego juvenil e da saturação das vitrines, os consumidores da Geração Z e da Geração Y na Ásia estão transformando o consumo em uma operação de inteligência. Comprar se tornou um exercício de raciocínio, de comparação, de pequenos “truques” para driblar o sistema. O nome disso é value-hacking: o consumidor deixa de agir como alvo e passa a agir como estrategista.

Esse comportamento se manifesta em diversas frentes. A Muji criou o “Muji 500”, uma loja com mais de dois mil itens essenciais, todos com o preço fixado em 500 ienes ou menos. O valor é simbólico: menos de R$ 20, o suficiente para representar o básico com dignidade. Na indústria da beleza, marcas como Rom&nd lançaram linhas mais acessíveis, com embalagens reduzidas e produtos em miniatura. A estética, antes vendida como luxo aspiracional, agora se adapta ao tamanho do bolso.

Outro exemplo é o uso de tecnologias para compra inteligente. A startup australiana Little Birdie criou uma extensão de navegador com IA capaz de rastrear e comparar preços em tempo real entre milhares de e-commerces. Até mesmo a Coca-Cola no Japão aderiu ao modelo de preço dinâmico nas suas vending machines, ajustando o custo das bebidas conforme o horário ou a demanda, como se fosse uma passagem aérea.

Por lá, o consumidor quer se sentir no controle. O prazer está em “ganhar” da marca, em se antecipar à propaganda, em fazer parte de comunidades que trocam cupons, fazem unboxing de dupes e compartilham planilhas de economia. O consumo, para essa geração, não é mais sobre ter. É sobre saber. Saber o momento, o canal, o código. E isso redefine completamente a relação com o mercado.

2. Inclusão radical: o consumo também é sobre quem pode entrar

Ao mesmo tempo em que quer gastar menos, esse consumidor quer se sentir visto. A segunda força identificada pela WGSN é o que chamam de “inclusão radical”: a exigência de espaços acessíveis, produtos pensados para corpos diversos e narrativas que não excluam pessoas neurodivergentes, com deficiência, vivências fora da norma ou temas antes considerados tabus.

Essa mudança não é apenas visual. É estrutural. Exige novos métodos de design, contratação de pessoas com vivência real nas equipes de criação e a transformação dos pontos de venda em ambientes mais democráticos. O relatório fala do conceito de “hard care”, o cuidado difícil, que exige trabalho. É diferente do “safe space” idealizado nas redes: é o “seen space”, o espaço em que alguém realmente se sente visto.

Na prática, isso significa transformar lojas em ambientes com sinalização clara, ambientes de regulação sensorial, checkouts simples, e também acesso online com tecnologia assistiva. O National Gallery de Singapura é um exemplo dessa lógica. O museu criou uma sala sensorial com cabines privadas, kits táteis e atividades pensadas com curadoria de artistas autistas do Sudeste Asiático. Não é inclusão performática. É inclusão processual, com espaço para escuta e erro.

A pesquisa também revela que 75% dos consumidores na Austrália acreditam que todos os negócios devem ser acessíveis a pessoas com deficiência. E 68% afirmam que estariam dispostos a pagar mais por produtos que atendessem essas realidades. Isso quebra um mito antigo de que acessibilidade é gasto. A nova geração enxerga inclusão como valor agregado.

3. Retail-tainment: consumir virou entretenimento emocional

A terceira força é a mais afetiva. Ela mostra como o consumo está se fundindo com o desejo por pertencimento, experiência e memória. O nome desse fenômeno é retail-tainment: a mistura de retail (varejo) com entertainment (entretenimento). Para a Geração Z, especialmente, o produto importa menos que o momento.

Na prática, isso tem feito marcas criarem experiências de compra ligadas a shows, fandoms, filmes e universos narrativos. A WGSN mostra que um terço da Geração Z em Singapura pretende gastar mais com entretenimento ao vivo. Na Tailândia e na Indonésia, dois em cada cinco consumidores participaram de shows no último ano. E isso vai além da música: jogos, filmes, moda e cultura pop estão sendo usados como chaves de ativação emocional no varejo.

O exemplo mais emblemático é o da UOB, um banco de Singapura que se tornou parceiro da turnê da Taylor Swift no país. Ao oferecer pré-venda exclusiva para clientes do banco, a UOB viu um aumento de 45% em novos cartões de crédito e 130% em cartões de débito. O banco não vendeu um serviço. Vendeu acesso. Vendeu uma sensação. E isso já acontece por aqui.

Essa lógica transforma o que entendemos por fidelidade. O consumidor não se prende mais a marcas. Ele se conecta a experiências. As lojas deixam de ser pontos de venda e viram cenários. As embalagens se tornam colecionáveis. A memória vira produto.

E o Brasil nisso tudo?

Ainda que o Brasil não esteja no escopo da pesquisa, é impossível não perceber ecos desse comportamento por aqui. A juventude brasileira enfrenta seus próprios abismos econômicos, emocionais e identitários. Também vive o esgotamento da promessa da ascensão via consumo. Também experimenta a frustração com a falta de pertencimento.

Nos últimos anos, vimos crescer movimentos de economia afetiva: consumo em brechós, troca de roupas, compra em grupos online, venda de produtos de beleza por revendedoras locais e muito mais. Jovens brasileiros também aprendem a negociar, a parcelar com orgulho, a compartilhar links de desconto como quem compartilha cuidado. O “ganhar do sistema” também nos é familiar.

Em relação à inclusão, ainda estamos atrás. O discurso está mais presente do que a prática. Mas também já existem pressões reais por representatividade, por ambientes acessíveis, por campanhas que mostrem corpos diversos e por marcas que entendam a diferença entre uma bandeira e uma experiência de vida.

No campo do entretenimento, estamos em sintonia. Fandoms organizados, experiências imersivas com artistas internacionais, estratégias de ativação em shows e eventos. O consumo como catarse emocional é algo que o brasileiro entende bem. Mas talvez ainda nos falte a consciência de que isso é também uma forma de se posicionar. De dizer: eu quero mais que produto. Quero memória.

O consumo não acabou. Mas mudou de lugar.

Os dados da WGSN mostram que a Ásia não está consumindo menos. Está consumindo diferente. Está dizendo que gastar é uma forma de resistir, pertencer e cuidar de si. Que o desconto não é só economia, mas afirmação de autonomia. Que inclusão não é bônus, é estrutura. E que comprar pode ser — ainda — uma forma de sentir.

O Brasil não precisa esperar esse futuro chegar. Porque, na prática, ele já está aqui. Só falta a gente se dar conta.

Fonte: (1) | Fotos: Canva

Daniele Almeida

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