Apt.: A canção pop transpacífica

Este texto é uma parceria entre o Asia ON e o Pop Pacific, projeto do International Institute for Asian Studies (IIAS) que investiga como culturas populares como K-pop, J-pop e anime cruzam fronteiras e se misturam entre a Ásia e as Américas. No artigo original, o professor Jayson M. Chun, da University of Hawai‘i – West O‘ahu, analisa “Apt.”, colaboração entre Rosé (BLACKPINK) e Bruno Mars, mostrando como o sucesso global da faixa representa o fenômeno Pop Pacific, onde a música conecta culturas através do Pacífico.

Você teria que estar completamente fora do mundo para não ter ouvido essa música. Em 18 de outubro de 2024, “Apt.”, colaboração entre a cantora de K-pop Rosé e o americano Bruno Mars, dominou a cena pop. A faixa animada alcançou 25 milhões de visualizações em apenas 24 horas no YouTube e ultrapassou 500 milhões em menos de 48 dias. No momento em que este texto foi escrito (fevereiro de 2025), o número já passava de um bilhão.

Ela quebrou um recorde no ranking Billboard Global 200 sem contar os EUA, alcançando o primeiro lugar pela 15ª vez e superando o clássico natalino de Mariah Carey, “All I Want for Christmas Is You” (1994). A canção também chegou ao topo do Billboard Japan Hot 100, tornando-se a primeira música de um artista ocidental a liderar o ranking japonês em mais de 11 anos.

Apesar de Rosé e Bruno Mars terem sido descritos como um ato de K-pop e “Apt.” ser considerada a música de K-pop mais rápida da história a alcançar um bilhão de streams no Spotify, seria mais preciso chamá-la de um sucesso Pop Pacific, já que mistura elementos da cultura americana e coreana. As referências diretas à Coreia são poucas: o título, que vem de um popular jogo de bebida coreano chamado “jogo do apartamento”, a primeira linha da canção e duas pequenas bandeiras coreanas agitadas por Bruno Mars. O refrão, por outro lado, é marcante: repete a palavra “apateu”, empréstimo do inglês “apartment”, que em coreano significa “apartamento”. Fora isso, a letra é toda em inglês, como acontece com muitas músicas de K-pop. Visualmente, a faixa faz referência aos anos 1980, tanto na moda quanto no cenário. Vestidos com jaquetas de couro pretas e camisetas brancas, Rosé e Bruno Mars tocam instrumentos e dançam diante de um fundo rosa.

Os próprios artistas têm origens transnacionais. Bruno Mars, superestrela internacional, nasceu Peter Gene Hernandez no Havaí, filho de um pai porto-riquenho e judeu de Nova York e de uma mãe filipina de Manila. Rosé, estrela do K-pop, é o nome artístico da neozelandesa Roseanne Chaeyoung Park, filha de pais coreanos. A música nasceu dessa colaboração entre culturas. Ambos eram contratados pela Atlantic Records, subsidiária da Warner Music Group. Rosé contou que Bruno pediu para ela enviar três músicas para uma parceria. Entre elas estava “Apt.”, que ele rearranjou, adicionou um verso e transformou em um sucesso mundial.

Esse hit representa bem a chamada K-culture, a cultura coreana transnacional que combina fortes influências americanas e algumas japonesas, resultado do conturbado século XX da Coreia. Embora seja um produto global, ainda rotulamos esse fenômeno com o “K” de Coreia. Para entender melhor, vale olhar mais de perto o lado Pop Pacific dessa canção.

Rosé – A coreana do hemisfério sul

Página do Instagram de Rosé em fevereiro de 2025.


“Apt.” começa com uma frase em coreano que pode ser traduzida como “O jogo aleatório favorito de Chaeyoung” (Chaeyoungi ga joahaneun rendeom geim), referência ao “jogo do apartamento”. Chaeyoung é o nome coreano de Rosé.

Rosé já mostrou seu lado coreano em vídeos de culinária tradicional explicados em inglês, sua primeira língua.

Uma neozelandesa criada na Austrália cantando sobre um jogo de bebida coreano pode parecer curioso, mas faz sentido quando se percebe como Austrália e Nova Zelândia se tornaram parte de uma esfera cultural que mistura o mundo asiático e o anglo-pacífico. Rosé representa o resultado da grande imigração asiática impulsionada por programas de negócios nas últimas décadas. No censo de 2023, 17,3% da população da Nova Zelândia se identificava como asiática, e em Auckland, cidade natal de Rosé, esse número chegava a 31,3%. Na Austrália, 17,4% da população declarou ascendência asiática no censo de 2021.

Quanto aos coreanos, em 2018 havia cerca de 35 mil pessoas de origem coreana na Nova Zelândia (0,76% da população) e cerca de 100 mil na Austrália (0,4%). Esses imigrantes acabaram sendo incluídos em um grupo mais amplo chamado “asiáticos”, junto de chineses e vietnamitas, e muitos artistas coreanos nascidos fora do país ajudaram a expandir o apelo global do K-pop.

Rosé mudou-se para Melbourne aos sete anos. Era tímida e passava horas tocando piano e cantando o que ouvia na TV. Por sugestão do pai (ou, como ela brinca, porque ele já não aguentava ouvi-la cantando de madrugada), fez uma audição para a agência coreana YG Entertainment, foi aprovada e, em 2012, mudou-se para a Coreia aos quinze anos para ser trainee. O país já era o centro de um entretenimento globalizado, com o K-pop fortemente inspirado na música ocidental. O gênero refletia uma cultura pop multicultural que ganhou o mundo e se tornou o rosto moderno da Coreia.

Sua origem internacional também marcou sua adaptação. Apesar de ter crescido em uma família coreana, Rosé contou que enfrentou dificuldades para se ajustar à vida na Coreia. Em entrevista à The Cut, ela disse:

“Achava que sabia tudo sobre a cultura coreana, mas percebi que havia muito que eu não sabia. No começo fiquei assustada, mas superei. Fiz o que era preciso para sobreviver e aprendi. Sou muito pouco coreana, mas também muito coreana ao mesmo tempo.”

Rosé estreou no BLACKPINK, grupo multinacional que canta em coreano, mas tem duas integrantes estrangeiras: ela e Lisa, tailandesa. Jennie Kim é coreana, mas estudou na Nova Zelândia, e Jisoo é a única nascida e criada na Coreia. A mistura de nacionalidades é uma das marcas do K-pop, e o fato de Rosé ser “pouco coreana e muito coreana” ao mesmo tempo ajudou a consolidar sua imagem. Ela consegue representar a Coreia no exterior e, ao mesmo tempo, incorporar uma identidade global, como mostra no vídeo em que ensina a cozinhar kimchi fried rice.

Bruno Mars – O artista do Círculo do Pacífico

Bruno Mars postando fotos suas com produtos da Hello Kitty e Pikachu, além do mangá Jujutsu Kaisen, ícones da cultura japonesa. Do perfil de Bruno Mars no Instagram, em 10 de janeiro de 2024.

As comunidades filipina e porto-riquenha migraram historicamente para o Havaí como mão de obra barata para trabalhar nas plantações de açúcar. Hoje, 368 mil pessoas, cerca de 25% da população havaiana, têm ascendência filipina, o que as torna o segundo maior grupo étnico do estado. Aproximadamente 48 mil pessoas, ou 3,4% da população, têm ascendência porto-riquenha. Os pais de Bruno Mars trabalhavam com turismo, a maior indústria do Havaí, responsável por cerca de 25% da economia estadual. Seu pai, inspirado por seu amor por Elvis Presley (que também amava as ilhas), foi para o Havaí como artista de entretenimento, enquanto sua mãe emigrou de Manila e se apresentava como dançarina de hula em um show em Waikiki. Mars entrou no setor do turismo aos dois anos e meio, quando apareceu no show do pai como o mais jovem imitador de Elvis do mundo.

Refletindo a falta de oportunidades de trabalho e de moradia acessível, ele, o pai e o irmão ficaram sem-teto após o divórcio dos pais e, por algum tempo, viveram em uma cabana sem banheiro dentro de um parque privado. Em 2003, como muitos jovens locais, mudou-se para Los Angeles após concluir o ensino médio, devido às oportunidades limitadas em sua terra natal. Em uma entrevista à revista Latina, ele falou sobre as dificuldades de se firmar como artista multicultural, relatando que os executivos das gravadoras frequentemente lhe perguntavam: “O que você é? Urbano? Latino?”. Mars também explicou os desafios de ser um artista mestiço, com heranças asiática e latina:

“Há muitas pessoas com essa origem mista que vivem nessa zona cinzenta… Muita gente acha: ‘Isso é ótimo, você está nessa zona cinzenta, então pode se encaixar em qualquer lugar que quiser’. Mas não é nada disso. Na verdade, é exatamente o oposto. O que estamos tentando fazer é educar as pessoas para que entendam como isso realmente é, para que nunca façam alguém se sentir assim novamente.”

Os executivos das gravadoras o colocaram em categorias étnicas rígidas. Em entrevista à revista GQ em 2013, ele explicou a resposta que costumava receber desses executivos:

“Seu sobrenome é Hernandez, talvez devesse fazer música latina, música em espanhol… O Enrique está em alta agora.”

Como consequência, ele mudou seu nome para “Bruno Mars” a fim de aumentar sua aceitação no mercado. Seu apelido de infância, “Bruno”, surgiu por causa de sua semelhança com o lutador profissional Bruno Sammartino. Ele afirma que não mudou o nome para esconder sua identidade porto-riquenha. Como relembra:

“Nunca disse que mudei meu sobrenome para esconder o fato de ser porto-riquenho… A verdadeira história é: eu ia usar apenas ‘Bruno’, um único nome. ‘Mars’ surgiu meio como uma brincadeira, porque soava grandioso, maior que a vida.”

Assim como muitos artistas japoneses e coreanos (incluindo Rosé) adotaram nomes artísticos ocidentalizados ou escritos em letras romanas para adicionar uma aura mais ocidental, ele usou seu nome artístico para evitar os estereótipos associados à sua origem.

Após as dificuldades iniciais, ele transformou sua formação transnacional em sucesso. Ganhou prêmios Grammy, incluindo o de Álbum do Ano em 2016, e se tornou uma superestrela internacional com turnês mundiais de grande êxito. Além de colaborar com artistas como Lady Gaga, também trabalhou com outro músico mestiço asiático, o vencedor do Grammy Anderson .Paak (Brandon Paak Anderson), de ascendência afro-americana e coreana, com quem formou o aclamado duo Silk Sonic.

Conclusão: “Apt.” como um hit Pop Pacific

“Apt.” seguiu os passos de “Gangnam Style” (2012) como um sucesso mundial do Pop Pacific.
Crédito: CC BY-SA 2.0 Korea.net / Korean Culture and Information Service (Jeon Han)

Houve muitos outros sucessos Pop Pacific que conquistaram o mundo. “Sukiyaki” (“Ue wo muite arukou”, 1961), do cantor japonês Kyu Sakamoto, liderou as paradas nos Estados Unidos e em diversos países, tornando-se, em 1963, um dos singles mais vendidos de todos os tempos, com 13 milhões de cópias comercializadas. “Gangnam Style” (2012), do cantor coreano PSY, também dominou as paradas globais e foi o primeiro vídeo do YouTube a ultrapassar 1 bilhão de visualizações (superando 5 bilhões até fevereiro de 2025). “Apt.” segue os passos dessas músicas e demonstra o crescente poder da Ásia no mercado musical mundial. Esse sucesso Pop Pacific, interpretado por uma australiana e um americano em uma canção majoritariamente em inglês, mas com palavras coreanas, representa de forma encantadora a natureza transnacional do Pop Pacific.

Leia o texto original em inglês aqui.

Foto de capa: Captura de tela do videoclipe de “Apt.” (2024) no YouTube. | Artigo traduzido pela editora Dani Almeida.

Nota da editora:

O termo Pop Pacific é usado para descrever os fluxos de cultura popular que atravessam o Oceano Pacífico, conectando Ásia, Oceania e Américas por meio de expressões como K-pop, J-pop e anime. Essa abordagem é estudada e divulgada no blog The Pop Pacific (blog.iias.asia/pop-pacific), coeditado pelos professores Jayson M. Chun (University of Hawai‘i – West O‘ahu) e Pat Patterson, e publicado pelo International Institute for Asian Studies (IIAS).

O projeto investiga como as culturas midiáticas da Coreia, do Japão, da China e de outras regiões da Ásia dialogam com o Ocidente em diferentes espaços, das grandes cidades e comunidades migrantes às plataformas digitais e centros de entretenimento. Inspirado na visão dos antigos navegadores polinésios, que viam o Pacífico como uma ponte entre povos, o The Pop Pacific entende a cultura como um território de trocas vivas e contínuas.

Essa visão também inspira o Asia ON, que busca ampliar o diálogo entre a América Latina, a Ásia e o Pacífico, mostrando como a cultura pop circula, se transforma e cria novas formas de pertencimento entre mundos distantes. A parceria e o intercâmbio com o The Pop Pacific reforçam esse compromisso de unir pesquisa, jornalismo e comunidade para compreender a cultura asiática em suas múltiplas conexões globais.

Agradecemos ao professor Jayson M. Chun (jmchun@hawaii.edu) e ao professor Pat Patterson pela colaboração e pela generosidade em compartilhar conhecimento e promover esse diálogo transpacífico que também guia o trabalho do Asia ON.
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Jayson Makoto Chun é professor na University of Hawai‘i–West O‘ahu, especializado em cultura da mídia popular asiática. É autor do livro "A Nation of a Hundred Million Idiots"?: A Social History of Japanese Television, 1953–1973 (2006) e publicou artigos sobre K-pop, J-pop e anime. Ele é coeditor do The Pop Pacific, um blog publicado pelo International Institute for Asian Studies que explora os fluxos da cultura pop pela Ásia e pelo Pacífico.

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