Quando amar um idol vira refúgio: relações parasociais no K-pop e a ilusão do afeto recíproco

Na era do cansaço emocional, vínculos intensos com ídolos que não conhecem seus fãs se tornaram comuns. O K-pop transformou essa dinâmica em produto e também em abrigo.
relações parasociais no K-pop
Grupo Seventeen em turnê | Foto: Divulgação

Você nunca conversou com ele, mas sente que o conhece. Sabe seu prato favorito, sua playlist, suas falas espontâneas nas lives. Sabe quando ele está exausto só de olhar seus olhos. E mesmo que ele nunca saiba seu nome, você continua ali. Esse é o ponto de partida das relações parasociais, e nenhum fenômeno cultural global as tornou tão visíveis quanto o K-pop.

O termo foi cunhado em 1956 por Horton e Wohl, ao descrever vínculos unilaterais entre audiência e figuras midiáticas. São laços construídos a partir de aparições públicas, entrevistas, redes sociais e performances. Não há contato direto. Não há reciprocidade real. Mas há intimidade emocional. E na era das redes, essa intimidade virou linguagem comum.

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Na cultura do K-pop, os idols não vendem apenas música, mas a fantasia de proximidade. | Foto: BTS – Divulgação

No universo do K-pop, as relações parasociais deixaram de ser efeitos colaterais da fama para se tornarem estratégias centrais de mercado. A indústria sul-coreana entendeu que a conexão emocional vale mais do que qualquer campanha publicitária. Agências moldam artistas com narrativas cuidadosas, criam conteúdos direcionados, e incentivam a fantasia da proximidade. Lives, fan signs, aplicativos exclusivos, selcas, cartas escritas à mão tudo é feito para que o fã acredite: “ele me vê”.

Esse tipo de vínculo encontra solo fértil numa geração marcada por esgotamento e carência emocional. Como descreve o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, vivemos em uma sociedade do cansaço, onde o excesso de desempenho, a hiperconexão e a autoexploração criam indivíduos ansiosos, solitários e fragmentados. O K-pop surge, então, como refúgio emocional estruturado. Não é só música, é afeto embalado em coreografia.

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Lives, fan signs e cartas são ferramentas de conexão emocional, mas também parte do roteiro. | Foto: Fansign Stray Kids – Divulgação

Essas relações oferecem conforto real. Muitos fãs relatam que acompanhar seus ídolos os ajudou a sair de quadros depressivos, a se reconectar com amigos, a se sentir menos sozinhos. Porém, esse conforto tem um preço: a ilusão da reciprocidade. Por mais genuíno que pareça o gesto do idol, ele está inserido em uma lógica de performance. O olhar, o carinho, a mensagem tudo faz parte de um roteiro.

Isso não significa que é falso. Significa que é produzido. E quando essa produção se torna o centro da vida emocional do fã, o risco aparece. Idealização extrema, frustrações com namoros ou hiatos, crises de identidade quando um idol muda de postura. Já vimos esses efeitos em fandoms globais, e eles não são raros. A paixão vira contrato e o carinho vira cobrança. Para além disso, o vínculo parasocial pode se transformar em obsessão.

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Por trás do brilho dos palcos, há cansaço, pressão e performance constante. | Foto: Twice – Divulgação

Na Coreia do Sul, esse modelo não surgiu por acaso. Desde os anos 90, o país investe pesadamente em sua indústria cultural como política de Estado. O movimento conhecido como Hallyu (onda coreana) nasceu como resposta ao colapso econômico de 1997. O governo viu no entretenimento uma forma de soft power e exportação econômica. Deu certo. Dramas, filmes, cosméticos, culinária, moda, turismo e, claro, o K-pop, se espalharam. Em 2018, o lucro da Hallyu ultrapassou 7,4 bilhões de dólares.

O sucesso foi tão grande que reverteu o fluxo tradicional da cultura global. Pela primeira vez, um país não ocidental ocupava o centro da cultura pop internacional. Mas junto com o orgulho, veio a exaustão. Os idols são treinados por anos, submetidos a dietas restritivas, rotinas extenuantes, vigilância extrema e vigilância de fãs. A política do “idol perfeito” cobra caro e os fãs sabem disso, mas mesmo assim, continuam esperando. Continuam amando.

Porque amar um idol, no fundo, é seguro. É uma forma de experimentar afeto sem o risco da rejeição direta. É ter companhia todos os dias, sem precisar se expor. É preencher o vazio da solidão com a fantasia de alguém que sempre parece disponível. Mas essa segurança é ilusória. E pode custar caro quando se torna a única fonte de vínculo.

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As relações parasociais transformam afeto em produto e solidão em comunidade. | Foto: Yunho do Ateez em vídeo chamada com fãs – Divulgação

Ainda assim, nem tudo é negativo. Relações parasociais também criam comunidades reais. Os fandoms se organizam, se encontram, lutam por causas sociais como o apoio em massa ao movimento Black Lives Matter ou o boicote ao comício de Donald Trump nos EUA. A relação começa como um laço solitário, mas pode virar mobilização coletiva. Há potência política nisso.

No Brasil, esse fenômeno tem crescido com força. Fãs brasileiros constroem comunidades, produzem conteúdo, aprendem coreano, viajam para ver seus ídolos, defendem causas. Para muitos, o K-pop foi porta de entrada para a cultura asiática, mas também para uma nova forma de afeto. Mais silenciosa, mais intensa, mais solitária. E claro, mais segura.

Não se trata de condenar essas relações. Elas fazem parte da nossa experiência contemporânea. Mas é necessário compreendê-las. Questionar o que estamos projetando. Reconhecer os limites entre admiração e ilusão. E lembrar que afeto verdadeiro não depende de perfeição, nem de roteiro.

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Mesmo quando o outro está distante, o vínculo continua sendo real para quem sente e aplicativos de mensagens pagas entre idols e fãs incentivam isso e criam a falsa sensação de proximidade. | Foto: Son Dong Pyo usando o Bubble à esquerda e mensagens do bubble do Vernon do Seventeen à direita – All Kpop

O que o fenômeno das relações parasociais no K-pop nos revela é mais do que uma nova forma de consumir cultura. É uma lente sobre como lidamos com a solidão, com a carência de escuta, com o desejo de ser importante para alguém. É um espelho de uma geração que aprendeu a confiar mais em ídolos inalcançáveis do que em vínculos reais, muitas vezes frágeis ou ausentes.

Entender esse movimento é também entender o nosso tempo. Um tempo em que o cansaço virou norma, o afeto virou mercadoria e o amor virou projeção. Um tempo em que as redes sociais encenam intimidade, mas muitas vezes aprofundam o abismo.

Por isso, é difícil condenar os fãs e mudar a indústria, mas podemos abrir espaço para reflexão. Para que possamos olhar com mais clareza para os vínculos que escolhemos construir, os afetos que cultivamos, as ausências que tentamos preencher. E principalmente, para que a gente possa reaprender a amar sem roteiro, a se conectar sem ilusão, a existir com mais presença, mesmo quando o outro está distante.

Porque, no fim, todo fã só quer ser visto. E todo idol, mesmo no palco, também quer. E talvez o verdadeiro desafio não seja amar um ídolo. Seja continuar se amando quando ele não pode responder.

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Para muitos fãs, amar um idol é uma forma segura de se sentir acompanhado. | Foto: BTS performando no MBC Plus x Genie Music Awards em 2018 – The Korea Herald/Park Hyun-koo

Este artigo faz parte de uma coluna autoral e opinativa. As ideias e análises aqui expressas são de responsabilidade exclusiva da autora e não refletem, necessariamente, a posição editorial do Asia ON.

Fontes: (1) (2) | Fotos: Divulgação

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