‘O Conto da Princesa Kaguya‘, é um filme de 2013 do diretor Isao Takahata do renomado estúdio de animação japonês: Studio Ghibli, inspirado no conto japonês do século X (período Heian) intitulado “Conto do cortador de Bambu”.
O filme é todo em aquarela e mostra uma relação intensa entre seus personagens e a natureza. A natureza sempre esteve presente na arte japonesa pois a relação dos japoneses é totalmente diferente da relação ocidental, como diz Tsudzumi Tsuneyoshi em “Pintura de La Naturaleza”:
“..não se conhecia em absoluto a separação do mundo do homem e o da natureza. O todo flui com o todo, não há nenhuma linha divisória…”
TSUNEYOSHI, Tsudzumi. Pintura de la naturaleza. In: El arte japonés. 1929. p. 78.
Assim, a natureza têm um papel importante na história da arte japonesa, pois desde antigamente, estes são influenciados e inspirados pela natureza, seja pela religião ou pelos contos nativos. No Japão o homem era visto do ponto de vista simbólico-religioso, assim como a natureza.
No xintoísmo, a natureza é vista como espiritual, ou seja, seus elementos são considerados deuses, como por exemplo a deusa Amaterasu, que é a deusa do sol. Portanto, a representação da natureza era para os pintores um processo espiritual. Já o homem não era visto como independente, mas parte do todo.
O zen-budismo, outra religião presente no Japão é uma religião de contemplação, autodisciplina, desapego e respeito pela natureza. Na concepção oriental de natureza não há nenhuma distinção entre o inanimado e o animado e não são feitas classificações. Os artistas pintavam apenas o essencial dos elementos e com suas pinceladas rápidas e leves, se fundiam a natureza. Na China e no Japão a pintura é uma extensão da caligrafia, assim, o caráter da pessoa é revelado.
Este artigo (originalmente um trabalho acadêmico para a matéria de “História da Arte da Ásia” do curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP) visa analisar qual a relação dos filmes do Studio Ghibli com a natureza, fazendo também comparações com artes japonesas, e como a religião aparece nos elementos da natureza dentro dos filmes.
Ficha Técnica:
Direção | Isao Takahata |
Produção |
Yoshiaki Nishimura
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Roteiro | Isao Takahata Riko Sakaguchi |
Baseado em |
Cortador de Bambu
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Elenco | Aki Asakura Kengo Kora Takeo Chii Nobuko Miyamoto |
Gênero | drama fantasia |
Música | Joe Hisaishi |
Edição | Toshihiko Kojima |
Companhia produtora | Studio Ghibli |
Distribuição | Toho |
Lançamento |
Japão – 23 de novembro de 2013
Portugal – 9 de abril de 2015 Brasil – 16 de junho de 2015 |
Idioma | japonês |
Disponível | Netflix |
O conto da princesa Kaguya
‘O Conto da Princesa Kaguya‘ foi escrito e dirigido por Isao Takahata, porém ele não o desenhou e o animou, diferente de Miyazaki em seus filmes. Assim como em muitos filmes do Studio Ghibli, ‘O Conto da Princesa Kaguya‘ tem como personagem principal uma menina: a princesa, mais tarde denominada Kaguya por sua luz e beleza.
A história do filme é baseada no antigo conto japonês do cortador de bambu. O “Conto do cortador de bambu” é a mais antiga narrativa que se tem conhecimento na história japonesa. Assim como no conto, no filme, um velho cortador de bambu, Sanuki no Miyatsuko, encontra uma menina, menor que sua mão, num brilhante talo de bambu. Ele fica encantado e acredita que ela a tenha sido enviada para ele pelos céus, sendo ela uma princesa. Miyatsuko a leva para casa onde junto com sua esposa, decidem criar a pequena princesa, que logo vira um bebê e cresce rapidamente.
Logo no inicio do filme vemos muitas plantas sendo representadas. No Japão as plantas têm muitos significados, assim como as estações do ano e isso é refletido na representações artísticas. Tsuneyoshi explica que diferente do ocidente onde o homem sempre esteve como o centro das atenções, na Ásia, o homem era visto como figura secundária e isso era exposto na arte asiática. As plantas também simbolizam a beleza espiritual do homem.
“Na Europa, onde o homem sempre foi considerado o centro do mundo, a figura humana era exclusivamente apropriada para a questão da arte, portanto, especialmente para a pintura. Por outro lado, no Oriente asiático, o homem, a menos que sua figura fosse idealizada do ponto de vista religioso-simbólico, era deixado como secundário, como um objeto de pintura, porque, desde os tempos antigos, a natureza era muito mais considerada”
TSUNEYOSHI, Tsudzumi. Pintura de la naturaleza. In: El arte japonés. 1929. p. 81.
Podemos ver essa relação do homem com a natureza em diversas pinturas antigas chinesas, onde o homem é visto bem pequeno. Isso foi também levado para o Japão. Assim, muitas pinturas mostravam uma paisagem em grande escala e colocando o homem como uma figura secundária, parte da natureza. Como podemos ver a seguir em uma pintura do período Kamakura, no século XIII.
Elementos da Natureza
Bambu
O primeiro elemento da natureza que vemos no filme é o bambu, que também está presente no nome do conto que inspirou o filme. O bambu faz parte do chamado “quatro nobres” japoneses – plantas que são muito representadas nas artes japonesas, juntamente com a flor de ameixa, a orquídea e o crisântemo. Outras duas plantas que são bastante representadas na arte asiática são: o lótus e a cerejeira, e todas são repletas de significados.
O bambu representa a primavera e com seu crescimento reto, simboliza a sinceridade e quando se rompe com o peso da neve, simboliza o destino dos homens. Já o broto do bambu marca o inicio do verão no Japão.
Cenas iniciais do filme com bambus em “O conto da princesa Kaguya”.
Na pintura acima, atribuída a Mitsunobu, podemos ver o desenvolvimento do bambu durante as quatro estações. A a pintura se inicia no inverno, com a neve em cima do bambu, que está quase se quebrando. Depois vemos a planta durante o outono, onde é possível ver outras plantas comuns ao outono aos pés do bambu e em seguida as folhas ficando laranjas.
Em seguida, vem o verão, começando no biombo de cima e continuando no de baixo, onde podemos observar os brotos de bambus. O verão é muito representado no filme, pois vemos muitos brotos de bambus. Em uma cena a princesa e o pai colhem brotos de bambu para o jantar (imagem abaixo).
Por fim, a pintura termina no desenvolvimento do bambu durante a primavera, com flores aparecendo por todo o seu caule.
O bambu é a planta mais representativa da Ásia e era muito representado na arte chinesa e depois transmitido para as artes japonesas e coreanas. Atualmente a arte do bambu (geralmente em sumi-ê – pinturas monocromáticas) é um símbolo característico da arte oriental.
O bambu também era um elemento familiar no século XVIII nas casas asiáticas. Uma das razões da importância do bambu na Ásia é a versatilidade do bambu que pode ser usado para comidas, na construção de casas, em artesanatos, para fazer armas e instrumentos musicais como a flauta. Muitos objetos como vasos, pratos e roupas também eram (ainda são) pintados com desenhos de bambus.
Siegfried Wichmann diz em seu livro ‘Japonisme’ que o monge Jue Yin, que viveu na China durante a dinastia Yüan (1280-1368), disse
‘quando eu estou feliz eu pinto uma orquídea, quando eu estou bravo eu pinto o bambu’.
O grande número de pinturas com a figura do bambu nas artes e artesanatos da Ásia foi logo percebido nas mostras internacionais, virando elemento de inspiração para muitos artistas europeus como Henri Rivière e Laurent Bouvier.
“Na mitologia chinesa o bambu tem um significado simbólico, isso foi adotado pelos japoneses. Taoistas deram ao bambu o princípio yang, pois ele cresce rápido, ficando grande em poucas semanas. Seu crescimento rápido é sinal de fertilidade, força e virilidade, em contraste com o princípio feminino de yin.”
WICHMANN, Siegfried. Bamboo. In: Japonisme. The japanese influence on western art since 1858. 1999. p. 85.
“O bambu é frequentemente retratado com animais e outras plantas em um papel simbólico. Assim, a imagem do tigre se abrigando em uma floresta de bambu durante uma tempestade é famosa e simboliza a fraqueza das batidas mais fortes e perigosas diante do poder invencível da natureza, enquanto o próprio bambu representa resistência e longevidade.”
WICHMANN, Siegfried. Bamboo. In: Japonisme. The japanese influence on western art since 1858. 1999. p. 85.
Assim, o bambu era muito representado por pintores e poetas na China, Japão e Coreia. Ele é um dos sete temas preferidos dos artistas asiáticos conforme diz Wichmann.
Outras plantas, flores e frutas
O filme de Isao Takahata “O Conto da Princesa Kaguya” é marcado pelas belas cenas da natureza. Muitas plantas, além do bambu, são representadas na animação. É pelas cenas da natureza que o diretor mostra a transição de tempo, mudando as estações e logo em seguida mostrando o crescimento da princesa Kaguya.
As flores desabrocham quando Kaguya passa, isso dá a entender o quanto ela é especial. No conto a princesa diz ser da “cidade da lua”.
Outras flores representadas têm muito significado na cultura japonesa, na religião xintoísta e no budismo. As plantas representam a beleza espiritual do homem.
O lótus, por exemplo, é muito importante no budismo e simboliza a alma pura, que nunca foi corrompida. Os japoneses observaram que seu caule sempre se mantém verde, independente da estação, assim, se vê que não há influência do tempo.
Uma árvore que é muito representada na arte japonesa e muito comum no Japão é a cerejeira. Ela representa o sentimento dos japoneses, é a personificação de uma alma elevada, pois floresce por pouco tempo e suas flores são logo levadas pelo vento.
As plantas representam também sentimentos dos homens e não há um limite entre o homem e a planta, novamente, todos são parte de um só. Com isso, os japoneses preferiam quadros com muitas flores em vez de retratos e tais quadros eram pintados com pincéis muito finos para mostrar todo o sentimento da natureza. No filme, feito todo em aquarela, mostra toda a delicadeza das flores e das frutas.
Outro ponto de destaque para o diretor e que marca o filme é a colocação da natureza em primeiro plano, deixando que a história se desenvolva atrás ou entre as plantas. Portanto, a natureza conta a história do filme, é como se ela fosse o protagonista e os personagens apenas coadjuvantes, num plano atrás.
Cenas de “O conto da princesa Kaguya” onde a natureza é colocada em primeiro plano e a história como secundária.
Utagawa Hiroshige foi um grande artista de ukiyo-e, no período Edo e ele tem muitas pinturas com a natureza em primeiro plano.
Animais e insetos
No filme de Takahata “O conto da princesa Kaguya” aparecem muitos animais, apesar de sutilmente. Os animais estão imersos na natureza, como parte dela, sem distinção. Pássaros, esquilos, cobras, porcos selvagens, um gato, entre outros, são animais representados por Takahata no filme.
Cenas com animais em “O conto da princesa Kaguya”
Emakimono
Na pintura japonesa há pinturas para além dos quadros. Pinturas eram feitas em rolos, portas e biombos. O emakimono é um sistema de narrativa ilustrada que surgiu na China e foi para o Japão no período Nara, do século VIII. Foi muito predominante no período Heian e Kamakura.
Os emakimonos combinavam escrita com pintura em papel de seda e contavam uma história, guiado por um conceito característico do mundo. Recorrentemente animais eram utilizados para representar os humanos. Também tinha muitas pinturas da natureza.
No filme de Takahata quando a Lady Sagami, tutora de Kaguya lhe ensina sobre arte, ela mostra para a princesa uma Emakimono e diz que este deve ser desenrolado com delicada e devagar, o que a princesa não faz.
Emakimono sendo representado no filme “O conto da princesa Kaguya”.
Buda
O budismo foi introduzido no Japão no século VI e logo a religião nativa do Japão, o xintoísmo e o budismo começaram a se fundir. Portanto, para muitos japoneses, não existe uma definição de religião mas crenças em conjunto que definem a religião no Japão. Ambas as religiões têm a apreciação da natureza em sua filosofia.
O filme “O conto da princesa Kaguya” se passa no período Heian. Ao longo do filme vemos algumas cenas onde mostra a religião mas isso é mais destacado no final. Kaguya se lembra de onde é, da chamada “cidade da lua” e diz que logo irão buscá-la, pois ela não está feliz. Após saber que alguém irá vir buscá-la, ela fica triste pois entende que as dores da terra são necessárias e ela não quer deixá-la.
O budismo é uma religião que prega muito o autoconhecimento e o desapego e isso é bem representado no filme, além é claro, da conexão com a natureza. Ao final do filme, na lua cheia, apsarás (espíritos femininos da nuvem e das águas) vem do céu ao encontro de Kaguya, para levá-la de volta à cidade da lua.
Junto com as apsarás está Buda, em sua mais calma feição, demonstrando paz. As apsarás deixam cair flores do céu e oferecem para Kaguya uma coroa e um manto, esse manto a faz esquecer tudo sobre seu período na terra, no qual Kaguya recusa, mas depois a apsará coloca sobre ela e todos juntos seguem para a lua, enquanto todos que passaram pela vida da princesa em um breve momento, olham para o céu.
Durante o filme também é mostrado em algumas cenas o Torii. O Torii é um portão tradicional japonês que têm ligação com o xintoísmo. Isso mostra como no filme é representado essa dualidade da religião, assim como é culturalmente no Japão.
O budismo foi e ainda é muito representado na arte japonesa, assim como elementos do xintoísmo. Ambas religiões estão intrinsecamente ligadas e isso é mostrado de forma sutil e leve durante o filme. Ambas as religiões também têm uma cultura de contemplação pela natureza, e como dito anteriormente, o homem faz parte da natureza.
O filme “O conto da princesa Kaguya” é um dos filmes mais lindos e delicados que já vi. Por ser feito todo em aquarela, com contorno forte de lápis, demonstra uma delicadeza, mas ao mesmo tempo uma força muito grande. O filme é repleto de elementos da natureza tão intrinsecamente que tudo parece muito natural, muito simples.
O final do filme não é de todo triste pois a princesa não estava feliz. As últimas cenas também a mostram tentando se desapegar do elementos da terra, como sentimentos e pessoas e isso é um preceito muito importante do budismo.
Outro ponto é que ela se sentia muito feliz e livre com a natureza ao seu redor e ao ser retirada contra a sua vontade do lugar onde era feliz, repleta de amigos, animais e plantas, por ser considerado muito simples, a princesa entra em depressão. Isso também nos ensina como a simplicidade deve ser valorizada e que dinheiro, roupas, ouro e etc. não trazem felicidade.
Uma das cenas mais bonitas do filme é quando Kaguya sai de sua mansão e encontra uma cerejeira muito florida. Ela se diverte, sorri e fica feliz ao entrar em contato com a natureza. A natureza também se destaca na vida de Kaguya quando ela pede um pequeno espaço de terra na nova mansão para sua mãe para criar um jardim e esse jardim é seu refúgio no ambiente que ela detesta.
Por todos esses elementos visuais, subliminares, musicais e narrativos que a história da princesa Kaguya é uma das mais belas artes japonesas. Há muitos outros elementos para pontuar nesta análise como a sutil crítica à destruição da natureza que Takahata faz no filme que mostra como o ser humano afeta a natureza de forma negativa e a estamos destruindo, pouco a pouco mas ainda assim, a natureza é muito resiliente e volta ao seu estado natural sem o contato com os homens.
Outro ponto a pontuar é a questão da perfeição de Takahata no filme. Em um vídeo dos bastidores, Takahata e a equipe tentam deixar o melão o mais realista possível no desenho e para isso eles fazem testes e mais testes, como cortar um melão de verdade para saber como é e como ficará a cena.
Por fim, o Japão com suas peculiaridades é um país com uma cultura muito rica e interessante, e através do anime (e de mangás) tem espalhado toda essa riqueza cultural para o mundo.
Ao analisar o filme e sua relação com a natureza, vemos um viés histórico, cultural e religioso vindo do Japão e o que mais se destaca é a simplicidade em olhar as coisas ao redor, não se colocando como o centro do mundo, mas sim, como parte de um todo.
Sobre o artigo
O artigo originalmente foi desenvolvido para a matéria “História da Arte da Ásia” ofertada pela professora Michiko Okano no curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde eu estudo. A professora e os alunos mantém um grupo de estudo com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil, você pode acessar outras análises no blog do grupo: https://artejaponesaunifesp.medium.com/.
Fontes bibliográficas e fotos: (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)
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- TSUNEYOSHI, Tsudzumi. Pintura de la naturaleza. In: El arte japonés.
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- WICHMANN, Siegfried. Bamboo. In: Japonisme. The japanese influence on western art since 1858. 1999.
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